NUNO CRESPO

Máquinas de imagens



“A telefonia, a televisão, o telefone, são, exclusivamente, de alcançe; o cinematógrafo, a fotografia, o fonógrafo — verdadeiros arquivos — são de alcançe e retenção.” Adolfo Bioy Casares, A Invenção de Morel (Antígona, Lisboa, 2003)



O universo de Mónica Gomes é animado pela curiosidade em descobrir os primeiros componentes das imagens, aquilo que as compõe e as faz mover. Não se trata de eclipsar o sempre misterioso facto das relações de proximidade e lonjura que as imagens estabelecem com o seu objecto, mas da composição de horizontes perceptivos.
Poder-se-ia dizer que através da sobreposição, composição e irisão a artista consegue criar paisagens, ambientes, texturas, abóbadas celestes. A sua pesquisa centra-se numa interrogação acerca da possibilidade de formação de uma imagem dos seres etéreos e aparentemente incorpóreos (nuvens, sombras, céus) e sobre uma recolha criteriosa de imagens antigas com as quais estabelece novas relações com o intuito de criar novos sentidos, novas experiências, novas visões. Em qualquer dos casos trata-se sempre de usar um conjunto de imagens com vista à abertura, no interior dos seus próprios objectos, de zonas de sensibilidade, de percepção, de sentimento.
O dinamismo que imprime no seu discurso desdobra-se nos mecanismos que constrói como suporte de existência do seu trabalho. Através destas peças de engenharia demiúrgica – rodas que projectam luz e vivificam imagens; projectores de slides que sobrepõem e espacializam as figuras – surgem as diferentes polaridades necessárias ao trazer à superfície o que reside no fundo da memória, da imaginação e da capacidade projectiva do espírito humano. Trata-se de uma tradução da imagem em espaço, a qual se socorre da multiplicidade de elementos como constituintes de um discurso polimórfico e sedutor. Neste contexto não existe um tema, mas um mote que ao longo das diferentes peças se vai desenvolvendo. A sala onde se encontram os trabalhos de Mónica Gomes, é uma espécie de portal de acesso a regiões que só existem enquanto existirem os dispositivos de luz, uma espécie de reino de fantasmas, espectros, produtos da phantasia.
No caso desta artista a inteligibilidade prende-se com a convocação que faz dos fantasmas. São seres que, tal como as quase-presenças criadas pela máquina de Morel, só existem quando um dispositivo mediúnico as convoca mas que depois de presentes se tomam pela própria realidade e passam a habitar a região do possível e do existente. Esta espécie de confusão é fruto não de uma desconfiança relativamente à imagem, mas do reconhecimento da suas capacidades de imposição e afirmação. Que se possam fazer transições imediatas entre as imagens e o mundo não é um mal, trata-se de um dado sobre a necessidade de encantamento tão própria da matéria humana. Nestes trabalhos o problemático não se localiza nas questões sobre as imagens como arquivo, memória ou testemunho do real, o que aqui está em causa relaciona-se com o feitiço das imagens, com o poder estremo de poderem seduzir, conquistar, substituir-se a tudo e a todos.
É neste sentido que o problema do cinema surge no trabalho desta artista. São os poderes de enfeitiçar e de tornar igual à vida aquilo que não passam de impressões reveladas sobre película que importa pensar. Através da mediação da luz o filme capta espectros que depois através de uma invenção voltam, por momentos, a ter uma presença quase-real. Em “Linha recta em que o Princípio e o Fim se tocam. E vice-versa” , a artista convoca não só a história do cinema, mas também a da educação da percepção humana necessária para a compreensão do fenómeno da imagem em movimento e do “alcance” e “retenção” que são a fortuna desta invenção humana. É também nesta obra que surge a linguagem. Na forma de legendas que delicadamente rodam sobre os fotogramas iluminados de um céu azul surge a pergunta: percepção ou concepção? Não se trata de retórica, mas da inquietação sobre a natureza da evidência na qual ecoam vozes metafísicas a duvidar se o mundo existe ou se é uma alucinação do sujeito.
A geografia do conjunto de trabalhos que Mónica Gomes apresenta é uma espécie de pensamento que assusta o próprio pensamento: são imagens que pensam, da mesma forma que uma pintura pensa, que uma escultura ou um edifício. Não se trata de reenviar a obra ao seu ser criativo e de aí fazer o centro inteligente, mas reconhecer na matéria que é a arte uma inteligência própria e autónoma — um facto que provoca tremores nas profundezas da camada racional, só o ser sensitivo “sabe” desta verdade, para o outro ser trata-se de um enigma.

in catálogo PRÉMIO EDP NOVOS ARTISTAS 2007, fundação EDP, Lisboa, Almedina, 2007.